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Pronta a habitar. Pequena mas com vista para a Patagónia.

sexta-feira, outubro 31, 2003

Diz-me que jornal lês... 

Cada diario, en cualquier parte del mundo, tiene sus características, su ideología, sus criterios políticos, sus intereses, su estilo. Y por supuesto (como consecuencia de todo lo anterior), cada diario también tiene sus lectores.

En Estados Unidos circula un email que define cabalmente, apelando al humor, qué tipo de público lee cada diario:



- El Wall Street Journal es leído por la gente que dirige el país.

- El New York Times es leído por la gente que piensa que dirige el país.

- El Washington Post, por la gente que piensa que ellos deberían dirigir el país.

- El USA Today, por quienes piensan que ellos deberían dirigir el país, pero no entienden el Washington Post.

- Los Angeles Times es leído por la gente que no tendría problemas en dirigir el país, si pudieran hacerse el tiempo.

- El Boston Globe, por aquellos cuyos padres acostumbraban dirigir el país.

- El New York Daily News es leído por la gente que no está muy segura de quién está dirigiendo el país.

- El New York Post, por la gente a la que no le importa quiénes están dirigiendo el país, en tanto hagan algo escandaloso.

- El San Francisco Chronicle es leído por la gente que no está segura de que haya un país o de que alguien esté dirigiéndolo.

- El Miami Herald es leído por la gente que está dirigiendo otro país.

quinta-feira, outubro 30, 2003

Citação pessimista 

Uma cedência ao pessimismo, citando a coluna de Maruja Torres no «El País»:

«O mundo irreal, o mundo da mentira, da ocultação e da fuga, do não prestar contas e enganar vai construindo-se à nossa volta, até cobrir por completo a realidade. Gela-nos o sangue e endurece as nossas artérias. Não importa. Não importa que nada importe.»

A propaganda 

O Governo americano anda sempre a queixar-se de que a imprensa só gosta de mostrar o lado negativo da reconstrução do Iraque. Vai daí resolveu inverter essa imagem negativa dando uma ajudinha à divulgação desse lado positivo tão escondido pelos jornalistas.

Foi assim que onze jornais americanos publicaram outras tantas cartas de soldados americanos no Iraque, onde estes falam de todas essas pequenas coisas boas para os iraquianos que a ocupação está a trazer ao Iraque.

O único problema é que as cartas são todas iguais. Só muda mesmo a assinatura no fim da prosa. Os soldados existem e estão mesmo no Iraque só que nunca escreveram a carta, não faziam ideia da sua existência.

Tratou-se, pois, de uma manobra de propaganda da Casa Branca.

Portanto, o lado positivo do Iraque que os jornalistas não mostram, porque só gostam de desgraças, teve de ser inventado pelos assessores do Presidente Bush.

Quem é que anda a mentir?

terça-feira, outubro 28, 2003

Sondagem no Iraque 

Deixo-vos os números de uma recente sondagem feita no Iraque.

67 % acham que as forças da coligação são uma força de ocupação
(contra 46% a 9 de Abril, quando os soldados americanos entraram em Bagdad)

15 % vê as forças de coligação como «libertadoras»
(contra 43 % a 9 de Abril)

Se as condições se mantiverem nos próximos três meses, 73 % passarão a ver as forças da coligação como uma força de ocupação e apenas 7,5 % as olharão como «libertadoras»

50,1 % são favoráveis à manutenção das forças da coligação
33,1 % opõem-se

64,3 % acreditam que a situação se deteriorou ou se manteve na mesma nos últimos três meses
23 % acham que houve melhorias

66,2 % não acreditam que haja um líder entre as actuais personalidades da vida política iraquiana.
Entre os 33,8 por cento que escolheram alguém, Ibrahim Al-Jaafari, membro do Conselho de Governo e líder do partido islâmico Daawa teve 12,4 %, Saddam Hussein 2,7 por cento e o chefe radical xiita Moqtada Sadr 1,2 %

13,7 % prefere um sistema político decalcado do modelo iraniano
10 % prefere um sistema político decalcado do modelo americano
6,4 % prefere um sistema político decalcado do modelo britânico
5,8 % prefere um sistema político decalcado do modelo saudita
3,5 % prefere um sistema político decalcado do modelo francês

33,7 % acha que o regime mais adequado para o Iraque seria o puramente islâmico
30,5 % acha que o regime mais adequado para o Iraque seria o democrático
23,7 % acha que o regime mais adequado para o Iraque seria o democrático islâmico



Ficha técnica: Foram inquiridas 1620 pessoas maiores de 18 anos entre 28 de Setembro e 3 de Outubro em sete cidades – Bagdad (capital), Baçorá (sul), Najaf (centro), Ramadi e Fallujah (oeste), Erbil e Suleimaniyah (norte). A margem de erro é de 3 a 4 %.

Fonte: Centro do Iraque para a Pesquisa e Estudos Estratégicos

segunda-feira, outubro 27, 2003

Iraque 

Para quem estiver interessado, leia este exercício de fina ironia feito por Steve Chapman no «Chicago Tribune».

sexta-feira, outubro 24, 2003

Os caninos desenvolvidos do Holmes Place 

Ou de como as empresas capitalistas se arrogam o direito de lucrar até mesmo quando não prestam nenhum serviço aos clientes

António Rodrigues
Jornalista

Sem saber, quase sem querer, vítima da boa fé que pode ter um cliente ingénuo como eu, ainda incapaz de olhar para o mundo só com o ar cínico dos nossos dias: todos são culpados até prova em contrário. Pois, dizia eu, sem me aperceber (até porque a transferência bancária vinha tragicamente disfarçada com uma série de números e letras indecifráveis), o ginásio do Holmes Place da Avenida da Liberdade foi-me tirando dinheiro da conta mensalmente sem me conhecer.

Mesmo não sendo sócio, mesmo sem terem registo algum de que eu alguma vez por lá me tenha assomado, sem nunca terem ouvido a minha voz, munidos apenas com um papel que eu assinei um ano e meio antes de abrirem, na altura em que estavam para abrir e não o fizeram não sei porquê, o Holmes Place achou por bem cobrar-me religiosamente todos os meses o preço da minha ingenuidade: 50,22 euros.

Para o Holmes Place, a minha jugular ingénua de cliente distraído (cliente aqui é um eufemismo, porque na verdade nunca usufrui de nenhum serviço) vale, portanto, 50,22 euros mensais para alimentar os caninos da empresa. Que cobraram religiosamente durante um ano e continuariam a cobrar a este distraído por outros mais, se uma proposta de adesão do Holmes Place na minha secretária (a grande ironia desta história!) não me tivesse feito acordar para um papel que assinara dois anos e meio antes, quando a minha vida era outra vida e a minha casa outra casa.

Com o novo milénio desapareceu das conversas empresariais um tema que nos anos 90 era omnipresente e nos fazia pensar no melhor para o futuro: a ética. A ética empresarial era um tema recorrente, muito por fruto do êxito de empresas como a Body Shop, que conseguiam ter lucros mesmo com padrões de actuação que implicavam uma moral restrita no acto de fabricar e vender os produtos aos seus clientes. Eu fui um dos que acreditei nisso, tanto assim é que o tema da minha licenciatura em comunicação empresarial foi mesmo esse: o da ética.

Pelos vistos, era apenas uma palavra dos 90 que caiu em desuso entrado o século XXI. A crise económica, depois do boom da era Clinton nos EUA, trouxe o desmoronamento de muitas fachadas até aí consideradas imaculadas. Empresas como a Enron, mostraram como essa história de que devemos deixar funcionar as leis do mercado é uma frase repetida por executivos que pretendem tirar os maiores lucros da especulação com a oferta e a procura.

Hoje o que está a dar é o melhor atendimento ao cliente. Mesmo que isso queira dizer, empresas de serviço cheios de meninos e meninas com um naipe de frases de cortesia que debitam sem admitir interrupção. Não ajudam, apenas fingem que sim. Principalmente, porque não nos ouvem, ou não nos percebem, ou não querem perceber porque não foi para isso que foram contratados.

Nesta primeira década do século XXI é que vemos como as relações entre as empresas e os clientes se esboroam por trás dos principados do marketing. Das regras de funcionamento da economia, vai desaparecendo, a pouco e pouco, a vontade de actuar eticamente, aparecendo em seu lugar, a promoção falsa da proximidade entre empresa e cliente. Falsa, porque à primeira exigência que o cliente tenha fora do cardápio de ofertas estandardizadas da empresa, esta engasga-se, debita desconexas frases de cortesia, garante que satisfará o pedido, mas rapidamente se percebe que tudo não passa de fachada. Parece que a máxima de Henry Ford revive: «pode escolher qualquer cor, desde que seja preto».

Não há relação próxima entre empresa e cliente. Porque a empresa não está ali para nos ajudar (como se encarregam de repetir publicitariamente), está ali para ter lucro. O que não nos deve fazer perder o sono. A empresa tem direito ao seu lucro. Tem direito a maximizá-lo, até. Desde que esse lucro reflicta a eficiência do seu trabalho. Desde que isso reflicta a sua contribuição para o bem-estar dos seus clientes – e, já agora, da sociedade. Desde que isso seja fruto do seu trabalho, como dizia a frase dos pais que tentavam incutir a honradez laboral aos seus filhos.

É o lucro sem labor que me repugna. Um chulo ainda fornece serviços às prostitutas que o mantêm: segurança, administração financeira e talvez até algum amor. Um carteirista tem vocação e prática, passa anos a fio a treinar para conseguir aliviar as suas vítimas da carteira sem que estas percebam. Mas o que dizer de uma empresa que cobra ao seu cliente por um serviço que nunca prestou?

O Holmes Place considera perfeitamente normal pagar-se por um serviço que não prestou. Não me fizeram nenhum cartão de sócio, porque eu não o pedi; não têm qualquer registo da minha entrada nas instalações, porque eu nunca lá entrei; nunca me viram e eu nunca os vi. Mesmo assim, o Holmes Place cobra-me 50,22 euros por mês. Será por respirar?!

Se calhar, talvez venham dizer que não cometeram nenhuma ilegalidade. Pode ser que sim. Os ministros Pedro Lynce e Martins da Cruz também alegaram não ter cometido nenhuma ilegalidade no caso da «cunha» da filha do titular dos Negócios Estrangeiros. E, na verdade, ninguém os processou. Viram-se foi obrigados a demitir-se. Injustamente? Então, se não cometeram nenhuma ilegalidade, porque é que se demitiram? Precisamente, porque abusaram da sua posição para tentar usufruir dela em proveito próprio.

O Holmes Place fez a mesma coisa: abusou da sua posição, abusou da boa fé de alguém que um dia pensou em ser seu cliente e assinou um papel. Mas era Março de 2001 e o negócio não se concretizou, porque o Holmes Place não cumpriu e não conseguiu abrir o ginásio que deveria abrir. Os meses foram-se arrastando. As vidas mudam. E apesar do dinheiro pago naquilo que julguei ser a pré-inscrição para algo que não se concretizou nos prazos razoáveis (eu não paguei uma casa que estava ainda em projecto, era um ginásio que estava para abrir), o Holmes Place achou por bem, um ano e meio depois do meu papel ter sido assinado, e sem que eu tenha dado qualquer consentimento, prosseguir como se nada se tivesse passado e eu fosse um cliente regular. E não sou!

E agora, jamais o serei! O que também é irónico, porque uma das regras do marketing diz que é mais barato manter um cliente que captar outro novo. O que se fôssemos a pensar em termos de lucros futuros, perceberíamos que os executivos do Holmes Place acabaram de perder muito mais comigo do que ganharam sendo «chicos-espertos».

Senão vejamos, tenho 33 anos e hábitos alimentares que não são saudáveis. Deixei de fumar, mas ainda bebo e gosto de arrebates gastronómicos. Tenho peso a mais e uma barriga que se vai salientando ou aligeirando, consoante a minha dieta tem mais ou menos cerveja. Tenho um joelho lesionado o que me impede de contribuir com afinco para o futebol amador e, por isso, mais dia, menos dia, acabaria por me convencer a visitar regularmente o ginásio, para lá deixar alguns litros de transpiração e, com eles, um quilito ou dois.

Nesta altura, já risquei o Holmes Place da lista. Em termos práticos, com os aumentos lógicos da mensalidade para 2004, o ginásio da Avenida da Liberdade da Holmes Place acabou de perder algum dinheiro das suas receitas do próximo ano. Porque, mesmo desistindo, ao fim de um ano. Prazo razoável para alguém como eu, que gosta mais dos prazeres da mesa que do espelho, de permanência assídua num ginásio, eu teria contribuído voluntariamente com muito mais dinheiro para os cofres da empresa do que assim.

No ginásio da Avenida da Liberdade do Holmes Place já deverão ter percebido. Mónica Tavares, directora de algo que não percebi, atendeu-me muito atenciosa e rapidamente da primeira vez e fez questão de salientar que levaria o meu assunto ao director do ginásio (estou tentado a acreditar nas suas palavras). A partir daí, passou a estar «ausente», «em reunião», «atendendo» a cada telefonema meu, mesmo tendo-se comprometido a telefonar, o mais tardar, até quarta-feira, 22 de Outubro de 2003. Outra ingenuidade minha, como confiar na palavra de alguém que trabalha no mesmo ginásio que acha por bem cobrar sem prestar serviços.

Um aviso final, a todos os ingénuos e distraídos deste mundo, por favor tenham cuidado com o que assinam, pode marcá-los para sempre. Principalmente, se estiverem a tratar com empresas como a Holmes Place.

Epílogo 

Há um programa televisivo em Espanha baseado numa ideia original, chama-se «Epílogo» e é simplesmente uma entrevista em que o entrevistado fala da sua vida de maneira livre e descomprometida, sabendo que a emissão só irá para o ar depois da sua morte. «Epílogo» é, isso mesmo, a última palavra de alguém, escolhida pelo próprio enquanto vivo. Na semana passada, o Canal + passou o de Vázquez Montalbán: terminou com ele entrando numa porta-livro. Podiam transmiti-lo por cá.

Uma frase de Montalbán 

Uma vez perguntaram a Manuel Vázquez Montalbán quem gostaria de ter sido se não fosse Vázquez Montalbán e ele respondeu sem duvidar: «O Papa ou o secretário-geral do Partido Comunista, porque são as únicas duas pessoas com acesso à verdade definitva. Um sabe se Deus existe e o outro sabe se a revolução vai triunfar.»
Uma achega apenas, não falava de Carlos Carvalhas...

quinta-feira, outubro 23, 2003

Jabor 

Não resisto a deixar aqui uma passagem da crónica de Arnaldo Jabor no jornal «O Globo», agora que já deixamos de ter o prazer da sua companhia no «Manhattan Connections»

O futuro virou uma promessa de aperfeiçoamento de produtos, com uma velocidade que fez do presente um arcaísmo em processo, uma espécie de passado “ao vivo” em decomposição. A democracia em país analfabeto trouxe a fabulosa ascensão livre da cretinice nacional; viramos um grande “pagodão” e não adianta racionalizar e dizer que é “legal”. Não é. É uma bosta. A literatura está dividida em best-sellers de um lado e tediosos bisnetos de Joyce, patéticos e ignorados, de outro.

Quem quiser mais basta ir aqui pedem alguns dados mas não dinheiro.

Dinheiro para o Iraque 

Como isto do Iraque vai sair caro e como o dinheiro não estica, o governo britânico já tem as organizações não governamentais à perna por causa dos cortes de verbas para apoiar todo o mundo que não seja o iraque. Não só as guerras saem caras, sair delas também.

Dinheiro e areia 

Pelos vistos, segundo a organização de beneficiência britânica Christian Aid desapareceram sem deixar rasto quatro mil milhões de dólares no Iraque, tal como se pode depreender pelo relatório da organização que se pode ler aqui. Cá para mim deve ser das tempestades de areia que têm muita tendência a tapar tudo.

quarta-feira, outubro 22, 2003

Montalbán morreu 

Um homem que era muitos, e muitos que produziam muito, morreu num aeroporto de Banguecoque em trânsito para o Nou Camp, onde ía ver o encontro que nunca perdia: o do seu Barcelona com o Corunha das suas raízes. Se a sua morte fosse escrita em argumento não teria resultado melhor. Será que os pássaros levantaram voo em Banguecoque?

terça-feira, outubro 21, 2003

Lembremos os Marretas (porque sim) 

It’s the Muppet Show with our very special guest star . . .

It’s time to play the music.

It’s time to light the lights

It’s time to meet the Muppets on the Muppet Show tonight.

It’s time to put on makeup.

It’s time to dress up right

It’s time to raise the curtain on the Muppet Show tonight.

Why do we always come here

I guess we’ll never know

It’s like a kind of torture

To have to watch the show

And now let’s get things started

Why don’t you get things started

It’s time to get things started

On the most sensational, inspirational, celebrational, Muppetational

This is what we call the Muppet Show!

sexta-feira, outubro 17, 2003

Bolívia 

O Presidente demitiu-se, mas não foi porque se berrava muito nas ruas e se sujava de sangue o chão, apenas porque um dos seus colegas da coligação resolveu bater com a porta. Aí, o presidente percebeu que já não havia mais nada a fazer e foi-se. Os americanos que o queriam onde estava já mandaram uns conselheiros militares para aconselhar a embaixada. Dada a influência histórica dos conselheiros americanos, espera-se para ver. Eu não me ponho a adivinhar.

quarta-feira, outubro 15, 2003

Schwarzenegger e a Bolívia 

Quem não deve estar muito contente com os problemas na Bolívia deve ser Arnold Schwarzenegger, o novo governador da Califórnia. A importação de gás da Bolívia era fundamental para resolver os problemas de abastecimento de energia que sofre a Califórnia. O gás sairia do Chile em barco até ao México, onde seria transformado em energia para os californianos consumirem a partir de 2006.

O fracasso do plano, ou, pelo menos, o adiamento até 31 de Dezembro da consumação do negócio, depois deste já vir com um ano de atraso, deverá ter posto o novo governador de músculos caídos. É só problemas e sem possibilidade de usar um duplo para as cenas mais difíceis.

Bolívia 

Na Bolívia, mais uma experiência interessante de como os americanos se julgam uma cultura superior com direito a impor aos outros aquilo que não ousam instituir em casa. Como não conseguem ou não querem combater o consumo de cocaína nos EUA – de que são os maiores consumidores mundiais –, a Administração americana preferiu ajudar o Governo do país mais pobre da América do Sul a arrasar com os cultivos de planta de coca.

Logicamente que as autoridades americanas não estão interessadas em saber que os camponeses da Bolívia já cultivam a folha de coca desde tempos imemoriais, muito tempo antes de que existisse sequer a ideia de construir um país chamado Estados Unidos. Nem querem saber que a folha de coca seja uma parte fundamental não só do seu sustento como da sua cultura, nem sequer que os camponeses bolivianos usam a folha de coca para iludir a fome e ter a energia para trabalhar de sol a sol para não ganhar quase nada. Nem sequer estão interessados em discutir uma ideia base: que acabar com os cultivos de folha de coca na Bolívia é ir contra o elo mais fraco na cadeia criminosa do tráfico de cocaína que fornece os EUA; é ir contra aqueles que não sabem defender-se, que apenas sobrevivem a montante num negócio que enriquece a jusante; é fingir que se actua em vez de se actuar.

Ainda para mais acabar com o fornecimento de folha de coca boliviana apenas conseguirá que os campos se transfiram para outro país do continente. É isso que temem os outros governos da América do Sul. Entretanto, lá no Norte, Condoleezza Rice defende a democracia de Sánchez Lozada: um boliviano multimilionário que fala espanhol com sotaque americano, mesmo que Sánchez Lozada tenha conseguido, em pouco mais de um ano, que o país mais pobre do mundo tivesse ficado ainda mais pobre.

terça-feira, outubro 07, 2003

Diplomaticus Amorfus 

Depois de tentar escapar pela esquerda baixa, com a história da honra que fez Pacheco Pereira acreditar nele,lançando as suspeitas para todos os lados (como se alguém metesse uma cunha sem ninguém a pedir), Martins da Cruz, o diplomaticus amorfus, finalmente demitiu-se. Ainda bem. Pode ser que agora no Ministério haja mais que arrogância vazia e pomposa.

segunda-feira, outubro 06, 2003

Elvis Costello 

Para os costellianos d'alma vale a pena ler este texto a propósito de North

Schwarzenegger 

Da crónica de Mario Vargas Llosa no «El País» sobre as eleições na Califórnia retiro as questões:
«A civilização do espectáculo é comparável com a democracia? Desaparecerá esta num mundo desprovido de ideias, onde se chegará ao Poder graças às refinadíssimas técnicas de manipulação da sensibilidade e das emoções humanas que no teatro, no cinema ou na televisão nos fazem rir, chorar ou exaltar perante jogos de prestidigitação que confundimos com a vida?»

Junto-lhe três citações da crónica de Christopher Caldwell na edição de fim-de-semana do Financial Times também sobre Schwarzenegger:

1. «A estratégia de Schwarzenegger é a de fazer confluir a sua identidade como candidato com o ícone taciturno que as pessoas conhecem do cinema e a estratégia está a resultar. A Califórnia tem andado na vanguarda da exportação de muitas mudanças políticas, desde os eventos de campanha elaboradamente coreografados até às políticas feitas com base em consultas de marketing. A campanha pós-verbal poderá vir a seguir.»

2. «Quando aos eleitores se lhes pergunta qual dos candidatos tem a experiência que melhor o qualifica para o cargo, Schwarzenegger fica em último lugar de longe, com apenas oito por cento dos votos. Mas, quando aos eleitores se lhes pergunta quem é que será o melhor líder, termina 15 pontos percentuais acima do seu adversário mais directo.»

3. «Ele e os seus colaboradores calculam que estamos a entrar numa era em que os apelos não-racionais atingem os eleitores de forma mais eficiente que os argumentos racionais.»

Na sequência das perguntas de Vargas Llosa, há uma outra que me surge: sem julgar a capacidade ou incapacidade da gestão do governador Gray Davis, que consegue, depois de ter um superavit de 12 mil milhões de dólares em 2000, fazer com que a Califórnia mergulhe numa situação de défice crónico e alto endividamento, será que a democracia quase directa da Califórnia é o futuro da democracia?

Quem estiver interessado no artigo de Caldwell pode encontrá-lo aqui

domingo, outubro 05, 2003

Chechénia 

Enquanto os EUA se entretêm com o Iraque, Vladimir Putin inventou umas eleições pretensamente democráticas e pretensamente normalizadoras da situação na república rebelde do Cáucaso. Akhmad Kadyrov foi eleito, depois das autoridades eleitorais terem retirado do caminho os adversários indesejáveis, e agora Putin já pode enfrentar a sua reeleição do ano que vem. Lembre-se que Putin chegou ao Kremlin defendendo a mão dura contra os rebeldes da Chechénia, só que três anos depois as coisas continuam iguais ou piores. Principalmente, para a população civil. Mas quem se lembra disso com tanta Al-Qaeda para destruir por aí!

sexta-feira, outubro 03, 2003

Uma citação 

Do Fahrenheit 451 de Ray Bradbury retiro este pensamento para fechar o dia:

«Encham os homens de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de factos, informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento de movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. Serão felizes, porque os conhecimentos deste género são imutáveis.»

Filha de diplomata II 

O que é mais engraçado neste país (mais vale rir que chorar) é a desfaçatez com que se corre a dizer que não se fez nada ilegal e ninguém pediu favores a ninguém. Não interessa que seja legal, o que a gente não gosta é que alguém, lá por ser ministro, tenha direito a gozar connosco sem levar troco. Até podemos ter sentido de humor, desde que os ministros também se riam muito quando estiver a decorrer o linchamento.

Filhas de diplomatas 

Fala terrasdonunca da falta de dinheiro dos portugueses para enviar os seus filhos para o estrangeiro, espero que com isso não insinue que só os privilegiados podem estudar fora do país. Há quem consiga andar lá por fora à conta do seu esforço e não do peso da profissão do pai, da mãe, da tia, da avó, da prima ou seja lá de quem for. Neste país pequenino há quem ainda tente remar contra a falta de berço.

Diplomaticus amorfus 

O lynce é um animal em vias de extinção até no governo português. Pergunta que se faz: para quando a extinção também de Martins da Cruz, exemplo do diplomaticus amorfus ramo que dá mau nome à espécie?

O tempo das bananas 

Se o ministro da Saúde falhou as contas da vaga de calor por 1307 mortos e o ministro da Educação arranjou uma excepção à lei excepcional de ingresso no ensino superior para que a filha do ministro dos Negócios Estrangeiros entrasse em medicina mesmo não tendo nota para isso; e se, mesmo assim, o primeiro-ministro não acha que é necessária uma remodelação e o principal partido da oposição não consegue fazer com todos esses casos real oposição, isto quer dizer que vivemos numa República das Bananas ou é um ar do tempo?

quarta-feira, outubro 01, 2003

O futuro da imprensa (aberto a discussão) 

A imprensa está a atravessar uma etapa de transição. As novas tecnologias e o peso quotidiano cada vez maior da televisão fazem com que os jornais andem à procura de si próprios, ao mesmo tempo que procuram evitar que os leitores fujam a sete pés das suas páginas.

Talvez caminhemos na direcção errada: procurando simplificar a escrita, tornando-a rápida, seca e sem profundidade, mais próxima de um leitor habituado a consumir televisão e de novas gerações que nasceram com o computador como artefacto comum na decoração das casas.

Se calhar, deveríamos prestar atenção à básica trilogia da linguagem dos media: a rádio noticia, a televisão mostra e os jornais e revistas explicam. Se calhar, digo eu, não percebendo muito da poda, os jornais ganhariam em reflectir mais e sintetizar menos. De outra forma, como convencer o leitor de que vale a pena comprar jornais e revistas?!

Dogville 

Como está para estrear já no dia 10, o novo filme de Lars von Trier, aqui fica um texto do próprio e uma entrevista que ele deu aos «Cahiers du Cinéma»

ENTREVISTA POR STIG BJÖRKMAN, CAHIERS DU CINÉMA, MAIO DE 2003

O MEU DESAFIO É CONSEGUIR UMA FUSÃO ENTRE O CINEMA, O TEATRO E A LITERATURA
Vejo DOGVILLE como um filme de fusão. Infelizmente, a fusão é uma noção bastante triste, mas não encontro melhor. Conhece o jazz de fusão? É uma mistura de estilos diferentes que impõe um ritmo uniforme. Como a cozinha de fusão que é uma mistura de pratos diferentes. À falta de melhor, queria descrever DOGVILLE como um filme de fusão. Há uma interrogação que exprime um olhar muito reaccionário sobre a arte: “O que é a arte?” Seguida da afirmação: “Isto não é arte!” Isso revela delimitação, classificação. Da mesma forma tentaram separar em cantões o cinema e a literatura. O meu desafio agora é conseguir uma fusão entre o cinema, teatro e a literatura. Mas não é teatro filmado. DOGVILLE vive a sua própria vida, designa os seus próprios critérios de valor, muito pessoais. Um novo género que pode de agora em diante chamar-se cinema de fusão. É importante que não se pergunte aqui o que é ou não cinematográfico. Porque chegamos a um estado em que tudo é possível. E aqui está uma pequena revelação do que é o cinema. Agora toda a gente vai deixar o cinema convencional e pegar no cinema de fusão. Será o único cinema do futuro! É por isso que é importante ter um nome. Mas, piada à parte, foi esta a direcção que quis explorar um DOGVILLE.

Desta vez não escreveu um novo manifesto antes da rodagem.
Não, é uma coisa que formulei para mim depois do fim da rodagem. É essencial que os elementos do teatro e da literatura não se misturem apenas com os meios de expressão cinematográfica. O todo deve funcionar como uma fusão sólida. É preciso produzir uma aliança harmoniosa.


Alguns traços de DOGVILLE lembram a literatura anglo-saxónica clássica, de Fielding a Dickens, como a voz omnisciente ou a divisão em capítulos.
É verdade, mas tinha sobretudo um livro como “Winnie, Ursinho” na memória. Nesse livro podemos ler no início de um capítulo “Capítulo no qual Winnie e Porcine vão à caça e quase apanham um Woozle”. Prelúdios assim estimulam a imaginação. Um dos meus filmes preferidos é Barry Lyndon, que também é dividido em capítulos. Mas já não me lembro se há alusões aos conteúdos dos capítulos. O argumento de DOGVILLE está dividido em cenas como indicação liminar: “a cena em que tal coisa vai passar”... Gosto da palavra cena, porque é equívoca, é tanto teatral como cinematográfica. Mas, mais tarde, acabámos por chamar a estas cenas capítulos, em parte por causa das conotações literárias do termo. Esta técnica narrativa cria estratagemas dramáticos. Às vezes criam-se expectativas que depois não se cumprem.

Se estabelecermos um paralelo com o teatro, DOGVILLE faz pensar bastante em Brecht e no seu teatro épico.
Sim, é claro que o filme se inspirou em Brecht. Chamar-lhe-ia uma inspiração em segunda mão. A minha mãe adorava Brecht. Ela deixou a casa dos pais quando o pai lhe partiu os discos de Kurt Weill. Ela só tinha 16 anos, mas Weill era a sua grande paixão musical. Ela não podia aceitar o acto do pai. Brecht era uma espécie de mestre da casa, durante a minha infância, enquanto que a minha geração tende a considerar Brecht um génio um pouco fora de moda. É uma questão de gosto e os gostos estão sempre a mudar. Mas sim, DOGVILLE foi inspirado em Brecht. A canção “Pirate Jenny” na Ópera dos Quatro Vinténs foi de facto um ponto de partida. Ouvi-a muito numa nova composição de Sebastian. Ouvi-a muito e fiquei surpreendido pelo tema terrível da vingança na canção: “Perguntaram-me quantas cabeças rolariam e o silêncio envolveu o porto quando respondi: todas!”

O primeiro texto do filme anuncia “isto é um filme” e no fim o narrador anuncia “assim acaba o filme” e não “assim acaba a história”. Porque um tal efeito de distanciamento?
É uma coisa que sublinho voluntariamente. Não sei porquê. É possível que seja influência brechtiana. Fui confrontado com o teatro de Brecht quando era bastante novo e depois não voltei a ter contacto com ele e com a obra dele. Sobrevivem na minha memória, mas como ambientes.


Para além da canção, como é que teve a ideia de DOGVILLE?
Acho que tive a ideia um dia num carro com Jens Albinus, o actor que tinha o papel principal em “Os Idiotas”. Estávamos a ouvir esta canção e disse-lhe que podia fazer um filme sobre a vingança. O mais interessante seria inventar uma história que mostrasse o que conduz à vingança. E depois meti na cabeça que só iria fazer filmes que se passassem nos Estados Unidos. Talvez porque na estreia de “Dancer in the Dark” me tenham criticado por fazer um filme sobre um país que nunca visitei. Tive dificuldades em compreender esta crítica. Acho que a verdadeira motivação desta cabala está na acusação do filme ao sistema judiciário americano. Tenho a pretensão de conhecer melhor a América através das imagens que passam nos media do que os americanos conheciam Marrocos quando fizeram Casablanca. Humphrey Bogart nunca meteu os pés nessa cidade. Hoje é difícil não ter informações sobre a América: 90% das actualidades e dos filmes vêm de lá. Pensei que pudesse interessar os americanos: ver como um não-americano olha para o país deles. Kafka escreveu um romace muito interessante chamado América e também nunca foi aos Estados Unidos. A partir de agora só vou fazer filmes que se passem nos Estados Unidos. DOGVILLE passa-se nas Montanhas Rochosas um sítio que para mim sempre simbolizou os Estados Unidos. Uma paisagem imponente, cheia de ravinas profundas.

Pensou na forma de DOGVILLE ao mesmo tempo que na história?
Não, ao escrever o argumento, pensei nele como um filme convencional. Mas pareceu-me aborrecido. Depois, um dia, fui pescar e pensei que podíamos ver DOGVILLE como num mapa. A história inteira passa-se num mapa geográfico. Fiquei muito fascinado com a encenação de Trevor Nunn de “Nicholas Nickleby” de Dickens com a Companhia Royal Shakespeare, uma das minhas grandes experiências televisivas, que também foi uma inspiração. Era como se os actores tivessem inspiração de improvisar com o texto. Era uma representação grandiosa!

Ao misturar os planos de conjunto com os grandes planos de Grace (Nicole Kidman) e dos outros papéis principais, produz-se um sugestivo suspense.
Queria que os actores tivessem uma interpretação naturalista, mesmo se os cenários estão longe de o serem. São como desenhos de uma criança. Quando damos a uma criança lápis de cor coloridos e lhe pedimos para ele desenhar uma casa, ele cria uma casa com traços muito simples. O nosso cenário funciona da mesma forma.

Em DOGVILLE, a acção é em grande parte assegurada pela voz de um narrador, um pouco na onda da velha tradição do romance inglês. Isso estava lá desde o início?
Sim. Como sempre escrevo o argumento muito rapidamente. É um argumento de quase 150 páginas, mas quando tenho uma ideia para uma história e começo a escrever tudo é muito rápido. Não li muita literatura clássica inglesa. Mas li Woodehouse por exemplo e o seu estilo malicioso inspirou-me muito. (...)
DOGVILLE foi filmado em apenas seis semanas. O que é muito rápido. Podia ter demorado mais tempo, mas assumi que o iria fazer num piscar de olhos. Passei dias inteiros de câmara ao ombro. Sei que alguns espectadores ficam incomodados com esta forma de realizar, sempre em movimento. Só posso defender esta técnica de uma forma: é a melhor maneira de fazer os meus filmes.

Porquê?
Não sei bem. Sim, talvez. Acho que há um contacto maior com os actores se estiver atrás da câmara. Posso comunicar com eles melhor do que quando estou ao lado de Anthony Dod Mantle e é ele que dirige a câmara – o que acontece algumas vezes.

Que pensam desta técnica todas as estrelas de Hollywood com que ornamentou o seu filme?Não sei, acho que devem ter pensado coisas muito diferentes sobre a forma de trabalhar, mas acho que ficaram contentes apesar de tudo. Nicole percebeu de imediato tudo o que estava em questão. Pedi-lhe coisas que sei que eram muito exigentes e ela executou-as simplesmente

Quando é que pensou nela para este projecto?Ela fazia parte desde o início. Escrevi o argumento com a ideia que o papel principal seria dela. Vi-a no filme de Ron Howard, que não é muito bom, e li numa entrevista que ela gostava de trabalhar comigo. E pensei “ok, vou escrever um filme para ela”. Ainda nunca a tinha encontrado nessa altura. Ignorava por exemplo que é tão alta. É magnífica!

Não a tinha visto em “De olhos bem Fechados” de Kubrick?
Acho que não. Vi o filme muito tarde. Acho que já tinha o argumento terminado. Ela está excelente.
Tivemos de esperar algum tempo. Ela estava ocupada com outras rodagens quando começámos a produção, por isso atrasámos a rodagem por causa dela. Isso traz sempre problemas, quando pensamos numa actriz e ela não está disponível. Esperámos por Nicole e estou muito contente.

E os outros? Foi você que os escolheu ou foi o seu director de distribuição?
Dependeu. Já conhecia alguns, como Stellan Skasgard. E há muito que sonhava trabalhar com um actor como Bem Gazzara. Como com Phillip Baker Hall, que tinha visto em “Magnólia”. Outros disseram que queriam trabalhar connosco, como Jeremy Davies e Chloë Sevigny. É divertido porque estão os dois óptimos. Tivemos sortemas tanta gente! Não consegue imaginar, mas é bem pior que um infantário!

Tom é uma estranha mistura entre idealismo e calculismo.
É um cínico. Mas eu também! O meu primeiro filme, a curta O Jardineiro das Orquídeas era dedicado a uma rapariga morta de leucemia, com a data de nascimento e morte. Era pura invenção! Pura e simplesmente mentira. Manipulação, cinismo. Pensei que se o filme começasse desta forma, o espectador o aceitasse mais a sério. Naturalmente, porque todos respeitamos a doença e a morte.

Grace comporta-se sempre com as suas heroínas trágicas da “trilogia coração de ouro”, “Ondas de Paixão”, “Os Idiotas” e “Dancer in the Dark”.
Sim, Grace comporta-se como alguém que tem um coração bom, mas ela não é – e não devia ser – um “coração de ouro”. Ela tem um outro dom. (...) Fiquei contente quando o pai a acusa de arrogância. Ela não consegue compreender e pergunta-lhe como é que ele pode dizer isso. Ele responde que ela é tão moralista que ninguém consegue rivalizar com ela em rectidão. Ela acha-se superior aos outros aldeões, eles que não fazem a diferença entre o bem e o mal.

Na sua “trilogia coração de ouro” há mulheres que se sacrificam por um homem, uma ideia, uma missão. Em DOGVILLE, a perspectiva é diferente. Grace está disposta a sacrificar-se, mas a sua contestação será violenta. Está farto de mártires?
Sim, queria fazer um filme sobre a vingança e a vingança feminina é mais engraçada de tratar do que a dos homens. “Pirate Jenny” é também uma mulher que se vinga. É bastante estranho, mas acho que as mulheres interpretam e exprimem melhor esta parte de mim. Esta parte feminina de mim, talvez!

Voltemos a falar de cinismo... Fazer um filme em inglês assegura um público mais vasto do que em dinamarquês?
Os meus últimos filmes decorrem nos Estados Unidos, por isso é normal que os diálogos sejam em inglês. E, como se passam nos Estados Unidos, gostava que os americanos os vissem. Mas em DOGVILLE, e isso é importante, quis que a voz do narrador fosse gravada por um inglês. Não quero esconder que os Estados Unidos estão a ser descritos por um observador exterior.

DOGVILLE vai ter continuação.
Sim, vou fazê-la. O meu único problema é que gosto de fazer de cada filme uma experiência formal. Agora quero transformar esta experiência em trilogia. Mas fazer três filmes de três horas no mesmo estilo torna-se monumental! Há não muito tempo escrevi um argumento chamado “Dear Wendy”, mas dei-o a Thomas Vinterberg, porque é uma história que é preciso contar de forma naturalista. Esse projecto cansou-me. DOGVILLE inspira-me tanto que quero continuar a viver lá mais algum tempo. É terra virgem. Há lá potencialidades que quero continuar a explorar. Mas claro que há muitos problemas em fazer três filmes da mesma forma. Mas quero fazer evoluir a história de Grace. A continuação chama-se “Manderlay” e decorre no Sul dos Estados Unidos e a última parte estou a pensar nela em Washington. A trilogia será então o retrato de uma mulher e o seu processo de amadurecimento. Vai ser engraçado fazer três filmes seguidos que têm uma continuação. A parte seguinte começa dois dias depois de DOGVILLE. Os três filmes situam-se durante a Grande Depressão Americana, nos anos 30. Gosto de histórias longas. É como um bom livro. Folheamos um bocadinho atrás, depois mais à frente, para ver em que página estamos e quantas páginas ainda há para ler.

Dogville II 

E este é o texto em nome próprio de Lars von Trier

Houve duas coisas que me inspiraram quando escrevi DOGVILLE. Quando estive em Cannes com “Dancer in the Dark”, os jornalistas americanos criticaram-me por ter feito um filme sobre a América sem nunca lá ter posto os pés. Isso irritou-me, porque tanto quanto me lembro eles fizeram o “Casablanca” sem nunca lá terem ido. Achei isso injusto e resolvi fazer outros filmes que decorressem na América. Esta foi a primeira coisa. Depois ouvi “Pirate Jenny”, a canção da Ópera dos Quatro Vinténs de Bertold Brecht. É uma canção muito forte e o tema da vingança agradou-me imenso.
Era preciso encontrar um local isolado para o filme, já que “Pirate Jenny” se passa numa povoação isolada. Por isso resolvi situar DOGVILLE nas Montanhas Rochosas porque, quando nunca lá fomos, parecem fantásticas. Que montanhas é que não são “rochosas”? isso significa que estas o são particularmente? Parece um nome saído de um conto de fadas. Decidi também que a história decorreria durante a crise de 29, porque a atmosfera pareceu-me apropriada.
As velhas fotografias a p&b do Governo americano tiradas durante este período agradavam-me bastante, mas nunca quis filmar a preto e branco. Quando fazemos um filme com um lado estranho (a cidade desenhada a giz no chão), tudo o resto deve ser normal. Se sobrepomos demasiados elementos, estamos a afastar as pessoas. É importante não abordar demasiadas coisas ao mesmo tempo. Trabalho um pouco como num laboratório, faço experiências. E quando fazemos uma experiência, não podemos alterar mais do que uma variável de cada vez.
Fui também inspirado de certa forma por Bertold Brecht e o seu estilo de teatro, muito simples, muito despojado. A minha teoria é que nos esquecemos muito depressa que há casas. De repente, inventamos a cidade, mas concentramo-nos sobretudo nas personagens. As casas só estão lá para nos distrair e de repente já não fazem falta ao espectador,
Que dizer aos que dizem que não é cinema? Talvez tenham razão. Mas também não é anti-cinema. No início da minha carreira fiz filmes muito “filmícos”. O problema é que se tornou muito fácil. O problema é que hoje se tornou muito fácil – basta comprar um computador e temos cinema. Dragões, exércitos desfeitos... basta carregar num botão.


Perdeu-se o lado fílmico, como havia em Kubrick, quando se esperavam dois meses pela luz certa nas costas de Barry Lyndon. Achava isso magnífico. Mas estar à espera só dois segundos em frente a um computador e um puto atrás do computador trata disso... É outra forma de arte, mas não me interessa. Já não vejo os exércitos nas montanhas, só vejo o adolescente a dizer “vamos corrigir isto, acrescentar sombras e trabalhar as cores”. É muito bem feito, mas não me comove. Sentimo-nos manipulados a um nível que não quero ser manipulado. Talvez porque estou mais velho. Quando era novo, deveria achar isto fantástico. Agora, sou um pouco teimoso. Daí voltar aos velhos valores, às velhas virtudes. Há um limite na beleza das imagens no ecrã. Se é demasiado belo, tenho vontade de vomitar. É como se olhasse para um truque de magia. Quando um mágico o faz com umas moedas ficamos fascinados, mas quando é a Torre Eiffel dizemos “e então?
DOVILLE passa-se na América, mas uma América vista através dos meus olhos. Não é um filme histórico, nem científico. É um filme de emoção. É claro que fala dos Estados Unidos, mas também de qualquer cidadezinha no mundo.
Quando somos crianças aprendemos o que é ser justo e bom, mas não vemos isso na América. Gosto muito dos americanos que encontro individualmente. Não acho que os americanos sejam piores que os outros, mas também não os acho menos maus que os dos estados terroristas de que fala o Sr.Bush. Acho que as pessoas são iguais em todo o lado. Mas que dizer da América? O poder corrupto. É um facto. O poder dado às pessoas sobre outra corrompe-os.
Quando inventamos uma personagem, pegamos em alguém que conhecemos e mudamos o contexto. As pessoas de DOGVILLE são todas dinamarquesas, são pessoas que existem. Depois escolhem-se duas ou três personagens que conduzem a história (Tom e Grace). Posso defender todas as personagens do filme, mas Tom e Grace são os que me estão mais próximos, os que mais se parecem comigo, de certa forma.
Isso quer dizer que me reconheço em Tom? Ah, sim. As pessoas estão sempre cheias de muito boas intenções no início, sobretudo os artistas, mas, depois, quando ficam mais importantes as causas passam para segundo plano. Às vezes, perdem completamente o ponto de vista. O que não é muito agradável, mas que não anda longe da verdade. Ele tenta muitas vezes, mas nunca consegue a rapariga... É o único a não a ter... Grace não é a heroína. É um ser humano, com muito boas intenções, mas mesmo assim um ser humano. Isso pode dar a impressão que martirizo as mulheres, mas de facto estas personagens não são só mulheres, são partes de mim. É muito interessante trabalhar com mulheres. Elas incarnam-me bem. Pintam-me bem e sinto-me em sintonia com elas.


Algumas pessoas acham que eu não gosto de mulheres, o que é falso. É sobretudo com os homens que tenho problemas. É a mesma coisa que os veados. O macho no bosque tem todas as fêmeas à volta dele, mas não suporta os jovens machos nas redondezas. Estão sempre a tentar entrar no seu território. Por alguma razão, no meu pequeno círculo, os homens à minha volta estão sempre a chatear-me, a trair-me nas costas. Aí está o problema que tenho com os homens. As mulheres não fazem isso.
Nicole disse-me que queria trabalhar comigo. Escrevi o papel de Grace para ela, ou para a imagem que tinha dela. Descobri que é uma óptima actriz. É interessante escolher alguém que fez sobretudo papéis frios e deixar fazê-la outra coisa. E depois é também interessante pegar numa estrela de Hollywood e pô-la num filme destes. Talvez atraia um público diferente, a menos que fiquem assustados pelo facto de só haver actores e um chão negro...

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