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Pronta a habitar. Pequena mas com vista para a Patagónia.

terça-feira, setembro 30, 2003

The End 

Comecemos pelo final. Sem lugar a dúvida: o mau morre. Saltando os pormenores (por demais entediantes), o bom era muito bom - verdadeiro herói; o mau, dos piores, jamais ao cimo da terra se viu criatura com tão vil carácter - sem rasto de escrúpulos.
Ela?
Frágil. Tão frágil como donzela que se preze: tez pálida, olhos azuis, cabelos louros. Um tanto baços, por falta de sol. Ingenuamente enamorada do mau-muito mau-pior-que-as-cobras. Até ao dia em que o bom-herói-galã a traz à realidade. Ancorando-a no molhado mar das certezas, onde ela percebe o que antes intuía e a sua bondade negava.
Pranto inevitável.
A lenda dirá, séculos mais tarde, ter daí brotado rio à sombra de pedra gigante. E uma falha geológica encomendará catarata com arco-íris eterno. Porém, disso tratará o futuro. Aqui não cabe.
Para além de prantos.
O bom mata o mau, como é da praxe. E à víbora cabe a redenção no derradeiro fôlego. Isto, em grande plano para não perder pitada. Espiados os pecados, morre o mau para descanso dos bem-nascidos, no dia em que o Sol se porá para todos, dando brilho aos cabelos da donzela.
E amor?
Também há, como se espera. Jura o herói de joelho em terra; chora ela a fungar. Uma ligeira hesitação incrédula antes do beijo com música de encordar finais felizes. Juram ambos amor eterno e alguém pendura o letreiro do costume, que assim reza: The End.
E com The End se acaba, mesmo no fim, esta história. Outra se lhe seguirá, bem diferente: com um mau-muito-mau-pior-que-as-cobras, um bom-de-derreter-corações e a donzela de olhos azuis e cabelos baços. Quando brilharem...

Buenos Aires 

A cidade que aprendeu a ser camaleão
num país que parece ainda sobreviver

A livraria Atheneo fica na Avenida de Santa Fé, a rua comercial da classe média alta de Buenos Aires. Num antigo cinema que por ser muito grande acabou por falir. É uma espécie de palácio dourado da cultura, com música, alcatifa vermelha, iluminação controlada, bar, mesas e estantes carregadas. Muitas pessoas aproveitam o fim de tarde para dar uma espreitadela nos livros. Vêem capas, leem páginas, poucos compram.
Os livros estão muito caros. Na Atheneo nem sequer há espaço para as promoções que se fazem em muitas outras livrarias. Com os custos do papel importado a multiplicar-se à medida que o peso perdia valor face ao dólar, e os ordenados inalterados, o consumo de livros desceu exponencialmente. Os livros importados tornaram-se objectos ainda mais proibitivos e já só servem para povoar as livrarias em conluio com os ácaros. As pessoas deixaram de comprar. Menores tiragens e menos livros editados impedem os preços de descer. Na pescadinha de rabo na boca, os livros passam a ser objectos de luxo.
Como os CD. Visitar a filial da multinacional americana Tower Records em Buenos Aires é uma experiência similar à de quem entra numa loja em liquidação. Reduzida a menos de metade do espaço, oferece pouco e este resume-se praticamente às edições nacionais e ao «mainstream». É uma loja triste, que nem a música anima.
Tenho amigos que não compraram um único livro no último ano, e não porque não o quisessem fazer, tão somente porque o dinheiro não chega. Dá para comer. O Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, paraíso anual para os milhares de estudantes de cinema da cidade, teve este ano muito menos presença de estudantes nas sessões normais. Só quando exibiam filmes gratuitamente se notava a existência de predisposição; faltava apenas o dinheiro. O cartaz também deixava a desejar em comparação com outras edições de presença obrigatória.
Mesmo assim, a cidade não morre. Meca cultural de um país que no resto parece um deserto (excepção feita a Rosario, 400 quilómetros a Norte da capital, que sempre foi berço de artistas), Buenos Aires reiventa-se, aprende novas formas partindo da escassez. Um camaleão cultural que adapta a pele à intensidade do sopro de vida. A 9 de Maio, o cartaz de Buenos Aires dava-nos a possibilidade de escolher entre 168 peças de teatro. Sem contar com as obras infantis.
Tem muito ver com essa capacidade dos argentinos em pensar de forma optimista, mesmo quando tudo à volta parece um poço sem fundo. Se Deus é argentino, como egocentricamente nos contam em jeito de piada, logo existe sempre uma solução, mesmo no maior desespero. E então pintam, cantam, escrevem, actuam, imaginam com força redobrada: se não há materiais, nem condições económicas – inventam-se.
Este mês saiu uma nova revista cultural. Chama-se «La mujer de mi vida». Uma loucura de excelente grafismo, 40 páginas, alguns bons colaboradores e um tema por número, neste é o desejo. O horóscopo do licenciado Goldberg diz que eu, carneiro, «serei um óptimo anfitrião esta semana», portanto, o melhor é ir para o aeroporto e oferecer-me como táxi – assim reza o conselho.
A economia toca no fundo; os preços subiram e os argentinos perderam grande parte do seu poder de compra, mesmo assim o humor aguenta. Roberto Fontanarrosa é escritor e criador de banda desenhada, autor de duas personagens imortais: o gaucho Inodoro (Sanita) Pereyra e um Dirty Harry sul-americano feito a traço negro chamado Boogie, o Oleoso. Acabou de lançar mais uma colecção de contos e outro álbum de Inodoro Pereyra na Feira do Livro de Buenos Aires: a sala encheu, como sempre parecem encher as salas onde se realizam actividades culturais em Buenos Aires, para o ouvir. Fontanarrosa preferiu contar piadas, falar de futebol e do «seu» Rosario Central do que explicar o seus contos – foi um êxito.
Com menos humor mas igual reverência foi a passagem de José Saramago pela capital argentina. Deu entrevistas a torto e a direito, conferências para salas esgotadas (incluindo uma no mítico Teatro Colón para três mil pessoas onde não cabia nem mais uma agulha), recebeu o doutoramento «honoris causa» pela Universidade de Buenos Aires. A Saramago seguem-no e ouvem-no como a um sábio: o seu recente corte com a ditadura cubana mereceu múltiplas referências na imprensa, os seus livros estão em exposição em qualquer livraria por mais obscura que seja. As mulheres falam do charme que mantém aos 82 anos.
Saramago já é visita habitual da Feira do Livro de Buenos Aires, a mais importante da América Latina, e que este ano teve mais de um milhão de visitantes, durante três semanas de Abril – as pessoas chegaram a suportar filas de uma hora para conseguir entrar. As vendas de livros na feira subiram em relação ao ano passado. Nada de admirar, já que em Abril de 2002 a crise fizera a economia tocar no fundo dos fundos. Outro dos habitués, o peruano Mario Vargas Llosa, apareceu para lançar a sua obra mais recente, «El paraíso en la otra esquina», sobre a pioneira dos direitos das mulheres Flora Tristán e o seu neto, o pintor Paul Gauguin. Os escritores podem não mudar o mundo, mas ajudam com toda a certeza a melhorar alguns mundos. Só assim se pode explicar o culto que tanto o português como o peruano gozam em Buenos Aires.
A revista de literatura «Lea» também voltou às bancas em Abril, um ano depois de ter suspenso a publicação, devido à inviabilidade económica do projecto. O relato publicado no regresso, em jeito de editorial, é elucidativo: «A feroz crise que sacudia esta Argentina desgraçada impunha-nos uma dura realidade: que a nossa revista não podia continuar a existir. Motivos? Os de sempre. A instabilidade económica fizera disparar o preço do papel e os custos de impressão, os anunciantes retiravam-se submersos nos seus problemas e as vendas nos quiosques e nas livrarias desciam. (...) Mas os que fazemos a ‘Lea’ somos teimosos e dissemos: isto não é o fim, é apenas uma retirada (estratégica, se quiserem). (...) Inventámos um programa de rádio, ‘Lea Nacional’, que tentou transformar os leitores em ouvintes, para manter viva a comunicação. E esperámos, sempre com a ideia de ressuscitar a ‘Lea’ o mais rápido possível.»
Buenos Aires não é a mesma da euforia dos anos 90. Os teatros de revista não se multiplicam avenida Corrientes fora, mostrando, como então, muitos corpos de actrizes de talento diminuto. Imagem de marca de uma época de ostentação, superficial e egoísta, que ficou conhecida como da «pizza e champanhe», quando o novo-riquismo da classe política menemista e dos seus amigos se alimentava com os negócios das privatizações.
Corrientes, a avenida da cultura, tem menos brilho agora. Há ainda o reflexo baço do que passou. E do que passa. A economia cresceu cinco por cento em Fevereiro, mas o país continua a ter 60 por cento de pobres e 18 por cento de desempregados. As noites são ocupadas por famílias inteiras que vasculham o lixo à procura de cartão – único meio de subsistência que possuem. Em avenidas com menos movimento à noite, as entradas das lojas foram transformadas em quarto permanente para os que perderam tudo. Os passeios nocturnos encontram sempre crianças a pedir, gente confundindo-se como sombras com as sombras dos próprios carros carregados de cartão que empurram. À porta dos McDonald’s, famílias esperam os restos de «junk food». Como se chamará ao que sobra da comida-lixo?
Sem perspectivas, quem teve possibilidades de pagar um bilhete de avião, partiu. A maior parte deles antes da desvalorização da moeda. Quando um peso argentino ainda valia o mesmo que o dólar americano. Porque, depois, a decisão tornou-se praticamente impossível. Alguns dos que hesitaram, hoje arrependem-se. A Argentina que se forjou da sucessiva vaga de imigrantes, transforma-se num país de emigrantes. Só em Espanha, há 200 mil argentinos a viver, muitos deles ilegais, grande parte chegaram na terceira grande vaga de emigrações: a primeira, em 1976, por razões políticas; a segunda, em 1989, devido à hiperinflação; finalmente, a terceira, o ano passado, outra vez por questões económicas.
A televisão não podia deixar de reflectir isso mesmo. Gastón Pauls é um actor muito conhecido da televisão e do cinema argentinos – em Portugal, vimo-lo em «Nove Rainhas», ao lado de Ricardo Darín, que se tornou um galã em Espanha aos 46 anos e hoje leva aos palcos de Madrid uma versão de «Art», de Yasmina Reza, que esteve três anos em cartaz em Buenos Aires. Agora, na televisão, Pauls apresenta um programa de reportagens sociais chamado «Ser urbano». A câmara segue-o pelas ruas da capital argentina ao encontro dessa gente de quem a sociedade se foi desprendendo ou dos outros que procuram nas margens inventar a sobrevivência.
O programa acaba sempre com uma espécie de serviço público de nostalgia: uma reportagem feita com algum emigrante. As duas que pude ver, tinham sido feitas em Espanha. Os pais de Florencio – um músico formado pelo Conservatório de Buenos Aires e que agora vive em Madrid ensinando inglês através da música – tiveram a oportunidade de ver pela primeira vez o rosto da sua neta, Amparo, nascida na capital espanhola, onde Florencio vive com a sua mulher há um ano e meio.
São como quaisquer outros emigrantes: tentam juntar dinheiro para regressar, guardam recordações, correm para a internet, confraternizam, bebem mate. A tristeza é muita. Um argentino, mesmo com o exemplo histórico de um século XX carregado de golpes militares, e políticos de duvidosa honestidade, só parte quando nada mais pode fazer. E mesmo assim, não se livra da reflexão: «Será cobarde partir?» «Não deveria ficar para tentar ajudar a que as coisas avancem?»
O ano passado, quando as filas se acumulavam à porta dos consulados dos países europeus, principalmente de Itália e Espanha, para conseguir um passaporte através da recuperação da árvore genealógica, muitos debates se fizeram sobre o assunto da partida. Na Feira do Livro deste ano, Diego Melamed apresentou o seu estudo sobre a última vaga da emigração argentina. Chama-se «Irse – Como y porqué los argentinos se están yendo del país» e ao lado de Melamed estavam alguns argentinos ilustres que preferiram trocar uma bem sucedida carreira internacional para regressar e tentar fazer «alguma coisa pela pátria».
No prólogo da obra de Melamed, o emigrante Mario Diamen escreve desde Miami: «Muitos pensam que, se em lugar de partir, as pessoas tivessem essa mesma resolução, essa mesma disposição e essa mesma vontade em aceitar qualquer coisa a qualquer preço, o país avançaria. Mas isto é uma falácia. A imigração implica habitualmente anonimato, o qual nos liberta da necessidade de aparentar posição, estatuto ou pertença a um determinado nível social. O imigrante transplantou-se com o objectivo de sobreviver, mas também de progredir economicamente e, por um tempo, aceitará pagar o preço que isto implica.»
Há quem diga que a Argentina mudou. A classe média saiu para a rua no final de 2001 e derrubou um Presidente e isso altera a ordem das coisas. Mas nestas eleições presidenciais, quando se pensava que o protesto continuasse com abstenção, votos brancos e nulos, os argentinos preferiram exercer o seu direito escolhendo entre os 17 candidatos. Cinco deles terminaram com resultados entre os 14 e os 24 por cento, nenhum mostrando capacidade para mobilizar o eleitorado com um projecto de país entusiasmante.
Para cúmulo, o triunfador da primeira volta, Carlos Menem, é precisamente o político que muitos argentinos consideram responsável pelo estado calamitoso em que caiu o país. A frase de campanha do próprio era uma clara demonstração de autismo: «Os Argentinos, temos outra oportunidade». Aterrados com a possibilidade do regresso do caudilho de La Rioja – «Mas quem é que votou em Menem?», ouvi muita gente perguntar –, os eleitores a quem Menem se dirigia aprestavam-se para mostrar nas urnas, no domingo passado, a sua recusa em ver Menem assumir a presidência pela terceira vez, só que este desistiu antes. Tornou-se, assim, no primeiro político a abandonar uma corrida eleitoral na segunda volta, ainda para mais quando tinha ganho a primeira.
Menem só quis evitar a humilhação da derrota, ele que sempre se vangloriou de nunca ter perdido uma eleição. Aproveitou a denúncia de um programa de televisão, que falava de irregularidades no escrutínio de 27 de Abril na província de Buenos Aires, denunciou fraude e bateu com a porta – foi para o Chile visitar a mulher, a ex-miss mundo chilena Cecilia Bolocco; a determinado momento até usou como trunfo eleitoral o facto de esta estar grávida, para vender a imagem de um homem que, aos 72 anos, ainda se mantém no auge físico e mental. A fraude, acabou por ser uma desculpa esfarrapada, porque o homem que se via a falsificar bilhetes de identidade na reportagem do programa «Kaos en la ciudad» pertencia, precisamente, às suas próprias fileiras.
«Kaos en la ciudad» é o concorrente televisivo do referido «Ser Urbano». Apresentado por Juan Castro, aposta também nos conteúdos sociais, mas com um toque mais «cool» e mundano. Castro passou a ter maior atenção dos media desde que resolveu revelar publicamente a sua homossexualidade. Está na moda sair do armário em Buenos Aires. E Castro aproveitou isso para tornar o seu programa num dos mais vistos da televisão argentina.
Com a «movida» gay cada vez mais visível, ganharam alguma notoriedade as festas Brandon. O nome é retirado do personagem do filme «Os Homens Não Choram», de Kimberly Pearce, onde Hillary Swank interpreta o papel de Teena Brandon que decide assumir identidade masculina, mudando o nome para Brandon Teena. Música electrónica, bandas electropop e cantinhos para conversar de duas em duas semanas em lugares diferentes da cidade, esta é a proposta das festas Brandon.
Leopoldo Brizuela, o escritor argentino apaixonado por Portugal e cujo «Inglaterra – Uma Fábula» foi editado entre nós pela Temas & Debates, também aproveita, no primeiro número da «La mujer de mi vida», para falar da sua homossexualidade: «A consciência de ter sido formado num mundo de mulheres, de estar dotado de características que naquela época se atribuíam exclusivamente às mulheres foi-me dado por um insulto, ‘maricas’. Os outros sempre pareceram perceber mais claramente do que eu o que era isto de ser ‘maricas’, por isso também não me sentia autorizado a discutir os termos.»
Brizuela escreve por uma necessidade, porque tudo o que escreveu, diz, «nasceu do desejo de entender, e de entender, precisamente, o mistério de desejar». E escreve também porque, numa época como esta, em que a Argentina parece estar na encruzilhada do seu futuro, depois do naufrágio volta a navegar com muita água no casco, há como que uma predisposição para pôr as cartas na mesa. Para que se possa ver o que vem a seguir.

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